Cunhada em 1970, a emergência espiritual remonta a séculos de história e é vivenciada por diferentes povos e culturas ao redor do mundo.
Neste artigo:
Durante dez anos a conselheira clínica Caroline de Moraes passou por estados de consciência e sensações das quais não sabia as causas, fatores e como tratá-las.
“Não tive coragem de contar para um psicólogo ou psiquiatra porque eu nem sabia o que era”.
A emergência espiritual, que provocou uma crise profissional, trouxe mudanças intensas, como uma transição de carreira, além de uma vida agora dedicada às questões epirituais.
A espiritualidade sempre esteve presente na história da humanidade. Porém, estudos científicos sobre o tema começaram apenas na década de 1970. O pioneiro na área da ciência da espiritualidade foi o médico psiquiatra checo Stanislav Grof, que desenvolveu pesquisas nos Estados Unidos.
Sendo assim, a emergência espiritual é definida cientificamente como um processo acelerado de crescimento espiritual e psicológico.
Esse estado pode resultar em uma crise, durante a qual as pessoas experimentam estados não ordinários de consciência. Apesar de se apresentarem desafiadores, também oferecem oportunidades de cura e transformação.
Emergências espirituais inspiradoras
Os relatos de experiências envolvendo a emergência espiritual estão presentes em diferentes culturas e religiões. Artistas como Van Gogh, e religiosos como São Francisco de Assis e Martinho Lutero, vivenciaram sintomas e experiências espirituais intensas. No caso de Lutero, a emergência espiritual deflagrou a crise ética da venda de indulgências na Igreja Católica e é entendida como um dos catalisadores da Reforma Protestante.
Em outros continentes além do europeu, o indiano Mahatma Gandhi promoveu a libertação de seu país da violenta colonização britânica por meio de ações pacíficas, depois de um árduo processo de emergência espiritual.
A figura do líder espiritual, ou xamã, é essencial nas aldeias da nação indígena Yanomami, em Roraima, no Brasil. Um dos mais conhecidos é Davi Kopenawa, que relatou em seu livro A Queda do Céu as privações, as imersões em estudos com os mais velhos e sua jornada para aprender a arte de segurar o céu por meio da espiritualidade e do contato com os xapiri, os espíritos da floresta.
“Experiências assim costumam ser visionárias, intuitivas e holísticas”, diz Letícia Alminhana, psicóloga e pesquisadora da Coventry University. Para ela, as emergências espirituais permitem reconhecer relações entre diversas questões que estão interconectadas.
Emergência espiritual e ciência caminham juntas?
A partir dos estudos de Grof, a religião e a espiritualidade também se tornaram foco de investigação científica na Psicologia. O diagnóstico diferencial entre experiências espirituais e psicóticas também foi um avanço, na medida em que surgiram esforços para que não houvessem falsos diagnósticos.
Hoje, o Manual Diagnóstico de Transtornos Mentais já orienta que algumas experiências espirituais ou religiosas não podem ser classificas como sintomas de transtornos espirituais, especialmente quando acontecem durante rituais que são da cultura de um povo.
No Brasil, algumas universidades tem pesquisadores ou grupos de estudos focados nas conexões entre a psicologia e a espiritualidade. Uma dessas iniciativas é o Núcleo de Pesquisas em Espiritualidade e Saúde (Nupens), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), coordenado pelo professor Alexander Moreira de Almeida.
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Principais sintomas e fatores
As emergências espirituais podem ser intensas ou desconcertantes e, por isso, nem todas as pessoas podem estar preparadas para o fluxo de mudanças que essa experiência traz. Além disso, ainda há um desconhecimento da população sobre o tema, o que provoca muitas dúvidas.
“Eu passei por uma angústia existencial muito grande. Então fui pedir ajuda ao grupo que me ensinava práticas espirituais e eles também não sabiam como me ajudar” conta Caroline de Moraes. Ela precisou passar por uma jornada mais longa até que encontrasse as ferramentas necessárias e úteis à resolução da emergência espiritual.
Os sintomas da emergência espiritual são diversos, como o caráter noético – senso absoluto de que o que é vivido é real –, ou o sentido de sagrado – o senso de que algo grande, respeitável e sagrado está acontecendo.
Além disso, os pacientes que passaram por emergências espirituais podem não conseguir mais manter atividades que costumavam realizar antes da crise. Pode haver também questionamentos de temas espirituais ou sociais.
As crises psicoespirituais podem surgir espontaneamente, sem a presença de fatores desencadeantes, ou sofrerem influência de situações como estresse emocional, exaustão física, doenças, acidentes, experiências sexuais intensas, entre outros.
“Como todo o processo é imprevisível, é comum as pessoas se perderem no caminho, se assustarem e, principalmente, ficarem sem apoio para poderem enfrentar a sua crise” diz Lígia Splendore, psicóloga especializada em Psicologia Transpessoal.
Emergência espiritual nem sempre é patologia
Os xamãs Yanomami, como Davi Kopenawa, devem ter uma rotina diferente do restante das pessoas de suas aldeias, para fortalecer a espiritualidade ao lado dos xamãs mais velhos
As emergências espirituais nem sempre são indicativas de um transtorno mental. Apesar disso, podem ser confundidas com uma crise psicótica, ou vice-versa. Isso porque ambas possuem sintomas muito semelhantes e, a depender da situação, difíceis de distinguir.
Para Letícia Alminhana, há duas tendências preocupantes. A primeira é uma ação dos profissionais de saúde mental que diagnosticam emergências espirituais como patologias. Já a segunda é um esforço de religiosos ou espiritualista em classificarem esperiências psicóticas como emergências espirituais.
“Um diagnóstico de psicopatologia poderá destruir a autoconfiança e levar a pessoa a um estado de depressão profunda”, diz a pesquisadora.
“Por outro lado, quando uma pessoa que está em franca crise psicótica é encaminhada para processos profundos de experiências espirituais, pode piorar sua crise e tornar sua psicopatologia ainda mais grave e difícil de tratar”, explica a psicóloga, que é pós-doutora pela Universidade de Oxford.
É necessário que haja um cuidado ético dos profissionais de saúde mental que atuam na medicina convencional. Isso porque muitas pessoas acreditam que eles deveriam trabalhar diretamente com experiências espirituais, como curas, energias, chackras, entre outros.
“Acontece que nenhuma dessas áreas são contempladas pelo treinamento em Psicologia ou Psiquiatria. É por isso que é preciso definir muito bem a linguagem e o lugar de atuação do profissional”, defende Letícia Alminhana.
Rede internacional ajuda a desmistificar o tema
Há ainda uma resistência da área médica e científica com as experiências profissionais, e isso tem prejudicado alguns diagnósticos e tratamentos.
“Sem conhecimento e sem estrutura psicológica para dar um sentido maior para suas experiências, é muito comum as pessoas buscarem acompanhamento psiquiátrico”, diz Ligia Splendore. No entanto, sem um preparo desses profissionais, os riscos aos pacientes são ainda maiores.
Um dos legados de Stanislav Grof foi a criação da rede de emergência espiritual, que desde da década de 1970 tem oferecido apoio online.
No Brasil, Ligia Splendore e Sean Backwell mantiveram a rede social Alma Bipolar por 9 anos, e em 2017 deram início ao movimento internacional Repensando a Loucura no Brasil, inspirado pela campanha #EmergingProud.
“O Repensando a Loucura no Brasil vem desde 2009 ajudando pessoas que recebem diagnósticos psiquiátricos a ressignificarem suas crises trazendo validação e protagonismo que podem servir como guias preciosos para esses processos de transformação”, afirma Ligia Splendore, que tem experiência em saúde mental junto ao Serviço Psiquiátrico de Trieste, na Itália.
Emergência espiritual e crise climática
As crises espirituais afetam indivíduos, mas têm relação com um contexto mais amplo. Isso torna as pessoas mais sensíveis à crise climática, à desigualdade social e ao sofrimento animal.
Durante a pandemia de covid-19, inúmeros cientistas do clima declararam um estado de emergência planetária. “Membros da comunidade de Emergência Espiritual Internacional lançaram uma carta aberta propondo que a emergência climática representava uma emergência global espiritual, um catalisador para um despertar global”, relembra Ligia.
Mais recentemente no Brasil, o Rio Grande do Sul passou por uma das maiores catástrofes climáticas no estado, quando cidades inteiras ficaram encobertas pelo aumento no nível dos rios.
É nesse contexto que um grupo de especialistas vai realizar o I Simpósio Nacional de Emergência Espiritual e Saúde Mental, com uma programação inteiramente online, no dia 9 de novembro de 2024.
O evento surge com o objetivo de divulgar os estudos que vêm sendo realizados na área com o intuito de preparar melhor os profissionais de saúde.
“A rede é um trabalho voluntário a gente vai estar indicando pessoas especialistas no tema. A expectativa é alavancar essa conexão para que a gente verdadeiramente fortaleça esse debate no Brasil”, diz Caroline de Moraes.
Primeiro centro de emergência espiritual
Após a catástrofe climática no RS, o Centro de Educação Integral Holoíkos, localizado em Boa Vista do Sul e fundado por Jorge Trevisol e Inês Kalkmann, assumiu a missão de se tornar o primeiro Centro de Emergência Espiritual do Brasil.
“Quando abri o chamado para buscar quem estaria disposto a ajudar a criar a rede no Brasil, eu realmente precisava do apoio de outras pessoas”, diz Caroline.
“Seis meses antes do meu pedido, Inês enfrentou uma crise de emergência espiritual e precisou ser internada em um hospital psiquiátrico. Naquela época, o estado havia acabado de passar pela maior catástrofe climática que já presenciamos”, diz a orientadora clínica.
O casal assumiu o papel de colocar em prática modelos e diretrizes que possam ser testados adequadamente e servir de referência para outras instituições. Por isso, o simpósio quer também unir esforços para a criação de novos centros que tratem as emergências espirituais a partir de suas particularidades.
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